A recente polêmica em Porto Velho envolvendo uma apresentação literária na Escola Joaquim Vicente Rondon levanta questões fundamentais sobre o papel do Estado laico, a liberdade religiosa e os limites da intervenção política na educação pública. O evento, que apresentou às crianças o livro infantil "Meu Terreiro, Meu Axé!", com financiamento da Funcultural, foi questionado por representar supostamente uma atividade religiosa sem o consentimento prévio dos pais. De um lado, há a defesa da necessidade de autorização parental para atividades de cunho religioso nas escolas; de outro, argumenta-se que o objetivo era promover o respeito à diversidade, combatendo a intolerância religiosa através da educação.
Esta controvérsia nos convida a refletir profundamente sobre os princípios que regem nossa sociedade. O Estado laico não significa um Estado antirreligioso, mas sim um Estado que não privilegia ou discrimina qualquer fé, garantindo a liberdade de crença a todos os cidadãos. Ao mesmo tempo, reconhece-se o direito das famílias de orientar a educação religiosa de seus filhos conforme suas convicções. É preciso considerar que a escola pública tem papel fundamental na formação cidadã, o que inclui o respeito à diversidade cultural e religiosa do país. O conhecimento sobre diferentes religiões, quando apresentado como conteúdo cultural e histórico, não constitui proselitismo religioso, mas educação para a cidadania e convivência pacífica.
Contudo, a linha entre educação sobre religiosidade e doutrinação religiosa pode ser tênue, exigindo sensibilidade por parte das instituições educacionais. A transparência com as famílias sobre conteúdos que abordem temas religiosos é uma prática que favorece o diálogo e a confiança entre escola e comunidade. O debate evidencia também um problema recorrente: a aparente seletividade na aplicação do princípio da laicidade. Quando determinadas manifestações religiosas majoritárias ocorrem em ambientes públicos, raramente enfrentam o mesmo nível de questionamento que religiões minoritárias. Tal disparidade revela a necessidade de critérios uniformes que tratem todas as religiões com igual respeito e consideração.
As repercussões desse caso, incluindo relatos de ataques racistas e preconceituosos dirigidos à autora do livro, demonstram como tensões religiosas frequentemente se entrelaçam com questões raciais e étnicas em nossa sociedade. Este é um lembrete doloroso de que a intolerância religiosa muitas vezes mascara outras formas de discriminação. Para avançarmos como sociedade plural e democrática, precisamos encontrar um equilíbrio que respeite tanto a laicidade do Estado quanto a liberdade religiosa, sem esquecer o papel educacional de promover o conhecimento e o respeito mútuo. Isso requer diálogo aberto entre todos os setores da sociedade, regulamentação clara sobre atividades culturais-religiosas em escolas públicas e, acima de tudo, compromisso com a igualdade de tratamento entre todas as expressões religiosas.
A verdadeira defesa das famílias e crianças não está na exclusão do diferente, mas na construção de uma educação que prepare os jovens para viver em uma sociedade diversa, onde o respeito ao outro é valor fundamental, independentemente de sua fé ou origem.
Diário da Amazônia