No editorial de hoje, iniciamos a discussão sobre a fase regulatória da Zona Franca de Manaus (ZFM), abordando as inspirações que moldaram seu arcabouço jurídico e as políticas de fomento às dinâmicas sociais e econômicas que, ao longo de mais de cinco décadas, vêm sendo continuamente aperfeiçoadas.
Para abrir este ciclo de reflexões, é essencial compreender duas figuras centrais desse enredo: Aureliano Cândido Tavares Bastos, pensador liberal e político alagoano, e Francisco Pereira da Silva, deputado federal pelo PSD-AM e constituinte de 1946, idealizador do primeiro marco regulatório da ZFM.
Aproveitamos a ocasião para prestar homenagem à memória de Francisco Pereira da Silva (Pereirinha), cuja morte completou ontem — 11 de setembro de 2025 — 52 anos. Visionário da integração amazônica, sua atuação política e intelectual deixou marcas profundas na história do desenvolvimento regional.
Figura 1 - Francisco Pereira da Silva
Fonte: Câmara Federal
Nascido no Rio Grande do Norte, construiu sua trajetória política no Amazonas, exercendo mandato parlamentar entre 1946 e 1963. Formado em Direito, colocou seus conhecimentos a serviço de propostas voltadas ao desenvolvimento da Amazônia, com destaque para sua atuação nas Comissões de Planejamento da Valorização Econômica da Amazônia e de Inquérito da Campanha da Borracha, na Câmara Federal.
Em 1951, durante o governo de Getúlio Vargas, Pereira da Silva apresentou o Projeto de Lei nº 1.310, convertido em Lei nº 3.173, de 1957, já sob o governo de Juscelino Kubitschek. Essa legislação deu origem ao Porto Franco de Manaus, marco inaugural da Zona Franca. Naquele momento, o Brasil buscava redefinir sua estratégia de desenvolvimento para a Amazônia.
A proposta legislativa refletia uma longa trajetória de ideias e debates, motivada pela necessidade de reativar a economia regional após a depressão provocada pelo fim do Esforço de Guerra (1942-1946). Além disso, revelava-se estratégica para a política externa brasileira no Norte, especialmente nas relações com as nações andinas que dependiam da navegação do rio Amazonas.
Para entender o surgimento da ideia de uma Zona Especial Tributária na Amazônia, é preciso voltar quase um século, às inspirações de Tavares Bastos, que visitou o Amazonas em 1865, movido por um projeto de país mais moderno, descentralizado e conectado ao mundo. Ele buscava compreender o potencial da região, sobretudo quanto à navegação fluvial e ao comércio internacional. Em suas palavras, dado seu posicionamento privilegiado no coração da bacia amazônica, Manaus era o: "Porto Franco, empório dos países amazônicos".
Figura 2 - Aureliano Cândido Tavares Bastos
Fonte: Academia Brasileira de Letras
Essa experiência foi decisiva para a redação da obra O Valle do Amazonas (1866), na qual propôs:
• A livre navegação do Rio Amazonas por nações estrangeiras;
• A transformação de Manaus em Porto Franco; e
• A criação de uma rede de comércio que integrasse o Brasil ao mercado global
Tavares Bastos via essas medidas como forma de romper o isolamento imposto pelo centralismo imperial e integrar a Amazônia ao restante do país e ao mundo. Para isso, defendia que Manaus se tornasse um centro comercial livre, aberto à navegação internacional e ao comércio com países vizinhos. Embora não concretizada em seu tempo, a visão de Tavares Bastos lançou as bases intelectuais de um projeto que ressurgiria com força décadas depois.
Quase um século depois, o projeto legislativo de Pereirinha ecoava as ideias de Tavares Bastos com surpreendente clareza. Para ele, Manaus poderia ser o elo entre o Brasil e o mundo, um entreposto capaz de atrair capitais e dinamizar a economia regional. Ambos, em seus respectivos contextos, enxergaram em Manaus mais do que uma cidade amazônica: viram nela um ponto de articulação estratégica entre o Brasil e o cenário internacional. Se o sonho liberal do século XIX encontrou barreiras, foi na caneta de Pereira da Silva pela proposta de 1951 que ganhou forma, inaugurando um novo capítulo na inserção econômica da Amazônia.
No próximo editorial, abordaremos as exposições de motivos discutidas no Palácio Tiradentes — sede do Congresso Nacional e da Câmara Federal à época, quando a capital da República era o Rio de Janeiro — no contexto do Projeto de Lei nº 1.310, de 1951: a Lei do Porto Franco de Manaus.
Marcelo Souza Pereira, é Economista, Especialista em Gerência Financeira, Mestre em Desenvolvimento Regional, Doutor em Sustentabilidade na Amazônia. É ex-superintendente da SUFRAMA e servidor público cedido à Câmara Federal.
Referências citadas:
ABL. Academia Brasileira de Letras. Biografia de Aureliano Cândido Tavares Bastos. Disponível em: https://www.academia.org.br/academicos/tavares-bastos/biografia. Acesso em: 10 set 2025.
BASTOS, Aureliano Cândido Tavares. O valle do Amazonas: a livre navegação do Amazonas, estatística, producções, commercio, questões fiscaes do valle do Amazonas. 2. Ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937.
BRASIL. Lei nº 3.173, de 1957. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l3173.htm. Acesso em: 10 set 2025.
CÂMARA FEDERAL. Projeto de Lei nº 1.310, de 1951. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1220464&filename=Dossie-PL%201310/1951. Acesso em: 10 set 2025.
_____. Biografia do Deputado Federal Francisco Pereira da Silva. Disponível em: https://www.camara.leg.br/deputados/130876/biografia. Acesso em: 10 set 2025.
FGV. Pesquisa de Biografia: Silva, Francisco Pereira da. Disponível em: https://www18.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/silva-francisco-pereira-da. Acesso em: 11 set 2025.
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